E
sta é uma de história
com final feliz, mas que mostra os riscos de acreditar no que dizem, sem
buscar conhecer a bula do remédio, ou as regras do jogo. Muitos
veículos de comunicação - inclusive este jornal Urtiga
- têm dado grande espaço aos alimentos orgânicos, produzidos
sem venenos (agrotóxicos), ou sementes transgênicas (geneticamente
modificadas em laboratório), entre outras qualidades, que lhes
dão personalidade de produtos saudáveis e ecologicamente
corretos.
Há dois fenômenos recentes em relação aos
orgânicos: 1- eles entraram em moda, sendo mais procurados pelos
consumidores brasileiros, e 2- a multiplicação de certificadoras
- organizações que dão um selo de garantia de que
o produto foi plantado dentro de regras que elas estabeleceram, cobrando
taxas dos produtores para fiscalizar a produção e permitir
o uso deste selo nos produtos certificados.
Normas Ministeriais - Desde 1999, existe a Instrução
Normativa n.º 7 do Ministério da Agricultura, com regras gerais
para a produção orgânica e o trabalho de quem certifica.
Ainda não há um órgão para fiscalizar o
funcionamento das certificadoras - apenas alguns colegiados, através
dos quais elas podem definir ações comuns.
Eis alguns pré-requisitos das certificadoras, para concederem
selo de produto orgânico: exigem que, no ponto de venda, orgânicos
sejam separados dos alimentos produzidos com agrotóxicos. No
caso de indústrias beneficiadoras, como torrefação
de café, o processamento deve acontecer à parte, limpando-se
antes a linha de produção, para não haver contaminação
com não-orgânicos. No campo, o produtor que resolve aderir
à; agricultura ou pecuária orgânica precisa respeitar
um tempo de transição, de anos, até que seu solo
seja descontaminado. São cuidados que ampliam a confiança
de consumidores brasileiros e estrangeiros.
Vaca louca? - Depois de receber estas informações,
você imaginaria que um produto orgânico, carne no caso, pode
estar contaminado pelo Mal da Vaca Louca? Pois é, quem lê
atentamente a norma do Ministério da Agricultura verá no
Anexo 4, que trata da Produção Animal, entre os "insumos
que podem ser adquiridos fora da unidade de produção, segundo
a espécie animal e sob orientação da assistência
técnica e controle da certificadora", consta a farinha de osso
calcinada ou autoclavada.
Segundo as teorias dominantes, a causa do Mal da Vaca Louca, no gado
da Inglaterra, foi o consumo de farinha de osso contaminada (feita de
ossos de ovelhas que sofreram a doença scrapie). O governo inglês
reconheceu a doença em 1996, três anos antes da Instrução
do nosso Ministério da Agricultura! Hoje, ninguém mais
quer comprar carne de animal que tenha recebido este tipo de ração,
alimento aliás estranho na dieta de bichos vegetarianos por natureza.
E agora? - Cada certificadora tem suas regras.
Como, pela norma brasileira, depende delas a autorização
de uso deste produto, Urtiga consultou as duas maiores (que, somadas,
acompanham o trabalho de mais de 2000 produtores orgânicos do
país). O Instituto Biodinâmico rapidamente respondeu: nunca
permitiu o fornecimento destas farinhas para animais. Já a Associação
de Agricultura Orgânica (AAO) nem precisaria ser procurada: seu
manual (versão maio/2000) está na Internet. E lá
está consta como permitido o fornecimento destas farinhas aos
animais!
O fato foi discutido em março pela equipe da Aipa, que procurou
os responsáveis, na AAO, para pedir esclarecimentos. Afinal,
que confiança poderei ter num produto orgânico se a regra
de produção é esta, estabelecida em maio/2000?
Resposta curta, por e-mail, de uma técnica da AAO: "Estamos em
processo de revisão das normas, que é demorado".
Vale aqui uma observação para tranqüilizar consumidores
mais alarmados: na verdade, usar o pasto no Brasil é mais barato
de que ministrar farinha de osso ao gado. Além disso, atualmente
o consumo deste produto por animais está proibido pela Vigilância
Sanitária. Portanto, com ou sem autorização da
certificadora, atualmente a farinha não pode ser fornecida aos
animais. Por fim: está apenas iniciando a certificação
de carne orgânica. Mas o descuido desperta desconfiança:
depois disso, como posso acreditar nas outras regras da produção
orgânica?
A pergunta foi encaminhada à AAO. Foram necessárias
algumas trocas de e-mail (a única forma com que os responsáveis
da AAO contataram a Aipa), questionando a regra desta certificadora,
até vir esta resposta, em meados de abril: graças ao alerta
da Aipa, a Associação de Agricultura Orgânica decidiu
encaminhar uma carta de esclarecimento aos produtores associados, e
retirar do Manual, na próxima versão, a permissão
de uso das tais farinhas na alimentação dos animais.
Final feliz - Sabendo, através
de um site, de uma reunião do Colegiado Estadual de Agricultura
Orgânica, em São Paulo, daí a uma semana, a Aipa
foi até lá , para levar a mesma pergunta aos demais certificadores
do Estado. Aqui, sim, temos o final feliz: o questionamento foi muito
bem recebido, e o Colegiado optou, inclusive, por encaminhar um alerta
ao Ministério da Agricultura, apesar da proibição
das farinhas já constar em outra norma ministerial, posterior
à n.º 7/99. Afinal, este item pode até dificultar a exportação
de produtos orgânicos brasileiros!
Durante a reunião, colocaram-se alguns números que fãs
dos orgânicos deveriam conhecer. No campo, os produtores recebem
em média 30% a mais para orgânicos, em comparação
aos convencionais. Mas, na estante do supermercado, este mesmo orgânico
pode custar até 60 vezes mais caro (6.000%) de que o similar,
não orgânico! E mais: o representante de uma grande rede
de lojas chegou a afirmar a um certificador que não vale à
pena reduzir o preço, pois, quando o faz, a procura não
aumenta. Alimentos orgânicos tornaram-se uma grife, e muitos imaginam
que "se for barato, não presta". Assim, em muitas regiões
do país, onde não é possível um esquema
alternativo de distribuição, os orgânicos continuam
inacessíveis para a maior parte dos consumidores. Que imaginam
que eles precisam ser dezenas de vezes mais caros de que os alimentos
produzidos com venenos!
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