Que
nome você daria a uma excursão em que o grupo de pessoas
que têm aquário em casa - quase todos norte-americanos
- percorram de barco parte do Rio Negro, o maior tributário do
rio Amazonas, para vivenciar o dia-a-dia dos piabeiros (coletores de
peixes ornamentais)? Com um detalhe: os excursionistas sabem que parte
do valor pago pela visita serve para apoiar um projeto de pesquisa e
ações comunitárias voltados a estes coletores.
Se
pensou gringo doido, acertou. Este é o nome de uma visita promovida
durante vários anos, sempre no final de janeiro, que termina
com a participação no Festival do Peixe Ornamental de
Barcelos.
Antiga capital do Amazonas, Barcelos - situada a 396 km de Manaus -
é o maior município do estado. Lá, a principal
fonte de renda é a pesca de peixes ornamentais, destinados quase
só à exportação. Só na coleta, há
mais de 2 mil pessoas trabalhando. Apesar de pouco conhecida em outras
regiões brasileiras, a festa de Barcelos atrai centenas de estrangeiros,
inclusive os gringos doidos.
Estima-se que a Amazônia possua duas mil espécies de peixes
ornamentais. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) permite o comércio de apenas 182
espécies. E contabiliza que, só da região de Barcelos,
saem cerca de 20 milhões destes peixes por ano. Detalhe: de cada
5 coletados, 4 são cardinais tetra (Paracheiroden axelrodi),
peixinho vermelho e azul metálico brilhante que muitos chamam
apenas de neon.

ATIVIDADE SUSTENTÁVEL?
 Desde
sua descoberta na região do médio Rio Negro, há
5 décadas, o cardinal tetra é sucesso de vendas no mundo.
Vale lembrar que o aquarismo é muito popular nos países
avançados. Na Inglaterra, país campeão deste hobby,
de cada 7 famílias, uma tem aquário em casa.
Em 1989, o ictiólogo Ning Labish Chao - pesquisador da Universidade
Federal do Amazonas nascido na China e naturalizado brasileiro -, temendo
que a superexploração dos peixes ornamentais levasse à
extinção das espécies, iniciou pesquisas na região.
Ele próprio se surpreendeu com o resultado.
Chao concluiu a Amazônia é maior que a exploração
destes peixinhos que são, segundo ele, recursos naturais renováveis
cujo estoque facilmente se refaz. Em outras palavras: extrair piabas
da natureza, da forma como vem sendo feito, não levaria à
extinção das espécies, pois eles existem em enormes
quantias, além de se multiplicarem muito e rapidamente. Caso
contrário, pergunta ele, como explicar que, com 20 milhões
de peixinhos saindo de lá anualmente, há duas décadas,
eles continuem tão numerosos?
Prosseguindo no raciocínio, ele ensina que a poluição
da água ou desmatamento podem prejudicar o ambiente a ponto de
colocar as espécies aquáticas em risco. Os coletores,
diz ele, não querem matar a galinha dos ovos de ouro: são
contra a devastação. Mas ele aposta: se a coleta for proibida,
eles partiriam para outras atividades para sobreviver, o que poderia
resultar na degradação ambiental.
Mesmo assim, Chao avisa que a atividade deve ser monitorada para não
ultrapassar a capacidade de suporte da natureza. Foi dessas constatações
que, em 1989, nasceu o Projeto Piaba, criado pela Universidade Federal
do Amazonas com o Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas.
Segundo o professor, este projeto atua em três áreas:
-
estudo da biodiversidade e ecossistemas,
-
técnicas
para coleta, transporte e armazenamento que reduzam a mortalidade
(hoje já inferior a 5%),
-
apoio
a piabeiros para garantir a renda no local de origem e educação
ambiental para a população local.
CADEIA PRODUTIVA
Para chegar ao objetivo, afirma o professor, é preciso trabalhar
com toda cadeia produtiva da piaba. Que tipicamente tem seis elos:
-
piabeiro (coleta o peixe),
-
intermediário (leva as piabas a Manaus);
-
exportador (vende o peixe a importadores de outros
países);
-
importador (recebe o peixe nos outros países);
-
atacadista (compra do importador e revende às
lojas);
-
varejista (de quem o aquarista compra os peixinhos).
Em 2000, um estudo
do pesquisador Ian Watson, do instituto inglês Natural Resources
Institute, citando dados de outro pesquisador, Gregory Prang, destacou
que, enquanto o piabeiro ganhava US$ 0.005 por cardinal em Barcelos,
o consumidor final chegava a pagar US$ 2,00 numa loja dos EUA. Uma diferença
de 40.000% entre as duas pontas da atividade! "Infelizmente, há
pelo menos três anos, o coletor continua ganhando R$ 10,00 pelo
milheiro de cardinais", lamenta Chao.
"Quem
coleta peixes consegue cerca de R$ 150,00 mensais. Quem os leva até
Manaus, ganha o dobro", confirma Roberto Leopoldino de Souza (Betão),
presidente Colônia de Pesca de Barcelos. Ele reclama que, até
o começo de 2003, só 266 pescadores puderam se filiar.
É que a maioria tem, no máximo, certidão de nascimento.
Para entrar na
Colônia, é obrigatório o registro profissional.
Em compensação, a partir disso, tem-se direito ao seguro
desemprego e aposentadoria rural. "No ano passado, 53 piabeiros
já receberam seguro-desemprego na época do defeso",
comemora, referindo-se aos quatro meses em que os peixes se reproduzem
e quem coleta deve parar de trabalhar.
Entre os que apóiam
a busca de documentação, está a Associação
dos Exportadores de Peixes Ornamentais de Manaus (Acepoam). "Nós
nos organizamos em 1990. Agora estamos apoiando a organização
dos pescadores", comenta Asher Benzaken, sócio da Turkys
Aquários e presidente da entidade empresarial.
Segundo ele, o
negócio dos exportadores só tem a ganhar com a organização
dos piabeiros. "Eles terão mais acesso a melhores métodos,
poderão ganhar mais e nós, ofereceremos um produto de
qualidade. A sustentabilidade ambiental também nos interessa,
pois somos empresas familiares e queremos deixar o negócio para
nossos descendentes."
Vale conhecer
alguns números mundiais do setor, listados pelo mesmo pesquisador
Ian Watson. Segundo dados da FAO (órgão da ONU), no mundo
são comercializados 350 milhões de peixes ornamentais
por ano. Só a exportação desses peixes soma cerca
de US$ 186 milhões por ano. Mas o comércio varejista em
torno dos peixes ornamentais é muito maior: mobiliza US$ 7,2
bilhões, o que inclui venda de equipamentos (como aquários)
e de alimentos para os peixinhos.
De todos peixes
de água doce vendidos a aquaristas amadores, 90% já provém
de criações em cativeiro, em geral fora do país
de origem da espécie. "São criações
em aquários, que exigem altos investimentos, relativamente menos
mão de obra e pouco contribuem para reduzir a pobreza",
interpreta o pequisador, numa opinião coincidente à da
equipe do Projeto Piaba.

.
"COMPRE
UM PEIXE, SALVE UMA ÁRVORE "
Paulo Petry é outro
integrante do Projeto Piaba, hoje atuando no Field Museum, em Chicago,
EUA. Ele defende uma tese que ele próprio reconhece ser polêmica
entre preservacionistas. Para ele, vale à pena explorar certas
espécies nativas como mecanismo de conservação,
em vez de deixar as áreas intocadas.
Ele justifica
com um exemplo: extraindo peixinhos ornamentais dos rios do Amazonas,
haverá interesse econômico em preservar todo ecossistema
onde eles vivem, garantindo-se ao mesmo tempo uma fonte de renda para
a população local.
"No
Brasil, fala-se da exploração de peixes ornamentais
em tom negativo", reclama, interpretando que a outra solução,
de criar peixes em cativeiro para venda, prejudicaria comunidades
tradicionais e o país. "Vários paises asiáticos
- como Singapura, Tailândia, Indonésia - já produzem
peixes brasileiros e logo dominarão o mercado internacional
destas espécies" diz prevendo que "populações
ribeirinhas daqui perderiam a atividade econômica disponível.
E desapareceria um argumento econômico para justificar a proteção
da floresta".
Para ele, a
extração dos peixes ornamentais no Rio Negro atende
às premissas da Convenção Internacional da Diversidade
Biológica, que propõe o uso da biodiversidade como recurso
econômico, desde que 1- a exploração não
cause danos irreparáveis às espécies; 2- as comunidades
guardiãs do recurso recebam parte da receita gerada pela atividade
extrativa.
Destas colocações
surgiu o slogan do projeto: Compre um peixe, salve uma árvore.
"O próximo passo é criar uma simbologia em torno
das espécies ornamentais, transformando cada peixinho de aquário
num embaixador de uma idéia conservacionista. Os aquaristas
entenderão e disseminarão a mensagem", diz
Petry vai mais
longe, propondo: se já existe a pesca esportiva controlada
para peixes comestíveis, como o tucunaré, por que não
fazer algo parecido para os gringos doidos, interessados nos ornamentais?
No sistema defendido pelo pesquisador, turistas poderiam comprar licenças
emitidas pelo Ibama para coletar alguns peixes ornamentais, que seriam
vistoriados antes de receberem autorização de exportação.
A prefeitura receberia uma taxa por isso, treinar-se-iam guias locais
para acompanharem os turistas, incentivar-se-ia a indústria
hoteleira, gerando empregos na comunidade.
Até hoje,
turistas não receberam autorização do Ibama para
coletar e levar peixinhos. Não é a única questão
legal que deve ser revista, na opinião de Petry. Para ele,
a própria lista de espécies que podem ser comercializadas
está defasada. "Só o Rio Negro tem entre 200 e
300 espécies de peixes com valor ornamental. Menos de 60 são
efetivamente exploradas e, destas, 4 perfazem quase 95% do volume
comercializado".
Ele recorda
que houve um esforço para rever a lista, através da
criação de uma comissão de especialistas nomeada
pelo Ibama em 1996: "Produziu-se uma lista para discussão,
e ficou nisso"
(fotos:
Ning L. Chao - Projeto Piaba)

PAPEL DO IBAMA
Lamentando
a falta de pesquisa sobre a real capacidade de suporte para a
extração de peixes nativos, José Leland,
gerente-executivo do Ibama no Amazonas, relatou, em janeiro, medidas
que o órgão governamental decidiu tomar em relação
aos peixes ornamentais.
Uma delas
foi expandir a área de coleta: “Nos últimos 35 anos,
vêm se explorando relativamente poucas espécies,
que saem só de Barcelos e a vizinha Santa Isabel. Para
evitar a pressão sobre uma única região e
distribuir a renda gerada pela atividade, estamos abrindo a coleta
para todo Estado do Amazonas.”
Segundo
ele, o Ibama está, sim, estudando a ampliação
da lista de peixes nativos passíveis de exportação.
“A demanda por esses peixes é tanta, que algumas espécies
cuja exploração é proibida aqui são
contrabandeadas para a Colômbia, de onde saem para os outros
países”, diz, entendendo ser esta a explicação
para a exportação de ornamentais colombiana ter
subido de 400 mil dólares, para U$ 8,6 milhões em
6 anos.
Leland é
otimista, ao contar que houve um saneamento do setor, “No início
dos anos 1990, o Ibama começou a fiscalizar dos exportadores.
Estabelecemos padrões de qualidade para seus equipamentos,
entre outras exigências. Há dez anos, eram 72 empresas
exportadoras registradas, que não investiam em tecnologia
ou empregos. Restaram oito, que têm trabalhado conosco”,
diz, referindo-se aos filiados à Acepoam.
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