RUMO
À ECOLOGIA PROFUNDA Texto
de Fritjof Capra, constante no livro "Teia da Vida"(fonte - Projeto
Vida)
"À
medida que o século se aproxima do fim, as preocupações com
o meio ambiente adquirem suprema importância. Defrontamo-nos com toda uma
série de problemas globais que estão danificando a biosfera e a
vida humana de uma maneira alarmante, e que pode logo se tornar irreversível.
Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos
levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São
problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são
interdependentes. Por
exemplo, somente será possível estabilizar a população
quando a pobreza for reduzida em âmbito mundial. A extinção
de espécies animais e vegetais numa escala massiva continuará enquanto
o hemisfério meridional estiver sob o fardo de enormes dívidas.
A escassez dos recursos
e a degradação do meio ambiente combinam-se com populações
em rápida expansão, o que leva ao colapso das comunidades locais
e à violência étnica e tribal que se tornou a característica
mais importante da era pós-guerra fria. Em última análise,
esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma
única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção.
Há soluções
para os principais problemas de nosso tempo, alguns delas até mesmo simples.
Mas requerem uma mudança radical em nossas percepções, no
nosso pensamento e nos nossos valores. E, de fato, estamos agora no princípio
dessa mudança fundamental de visão de mundo na ciência e na
sociedade, uma mudança de paradigma tão radical como foi a revolução
copernicana. Porém,
essa compreensão ainda não despontou entre a maioria dos nossos
líderes políticos. O reconhecimento de que é necessária
uma profunda mudança de percepção e de pensamento para garantir
a nossa sobrevivência ainda não atingiu a maioria dos líderes
das nossas grandes universidades. Nossos
líderes não só deixam de reconhecer como diferentes problemas
estão inter-relacionados; eles também se recusam a reconhecer como
suas assim chamadas soluções afetam as gerações futuras.
A partir do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções
viáveis são as soluções "sustentáveis".
O conceito de sustentabilidade
adquiriu importância-chave no movimento ecológico e é realmente
fundamental. Este, em resumo, é o grande desafio do nosso tempo: as chances
das gerações futuras.
A Mudança de Paradigma Na
minha vida de físico, meu principal interesse tem sido a dramática
mudança de concepções e idéias que ocorreu na física
durante os primeiros 30 anos deste século, que ainda está sendo
elaborada em nossas atuais teorias da matéria. As
novas concepções da física têm gerado uma profunda
mudança em nossas visões de mundo; da visão de mundo mecanicista
de Descartes e de Newton para uma visão holística, ecológica.
A nova visão da realidade não era, em absoluto, fácil de
ser aceita pelos físicos no começo do século. A
exploração dos mundos atômico e subatômico colocou-os
em contato com uma realidade estranha e inesperada. Em seus esforços para
apreender essa nova realidade, os cientistas ficaram dolorosamente conscientes
de que suas concepções básicas, sua linguagem e todo o seu
modo de pensar eram inadequados para descrever os fenômenos atômicos.
Seus problemas não eram meramente intelectuais, mas alcançavam as
proporções de uma intensa crise emocional e, poder-se-ia dizer,
até mesmo existencial. Eles
precisaram de um longo tempo para superar essa crise, mas, no fim, foram recompensados
por profundas introvisões sobre a natureza da matéria e de sua relação
com a mente humana. As dramáticas mudanças de pensamento ocorridas
na física no princípio deste século têm sido amplamente
discutidas por físicos e filósofos durante mais de 50 anos. Elas
levaram Thomas Kuhn à noção de um "paradigma" científico,
definido como "uma constelação de realizações - concepções,
valores, técnicas, etc. - compartilhada por uma comunidade científica
e usada por essa comunidade para definir problemas e soluções legítimos".
Mudanças
de paradigmas, para Kuhn, ocorrem sob a forma de rupturas descontínuas
e revolucionárias. Hoje, 25 anos depois da análise de Kuhn, reconhecemos
a mudança de paradigma em física como parte integral de uma transformação
cultural muito mais ampla. A
crise intelectual dos físicos quânticos nos anos 20 espelha-se hoje
numa crise cultural semelhante, porém muito mais ampla. Conseqüentemente,
o que estamos vendo é uma mudança de paradigmas que está
ocorrendo não apenas no âmbito da ciência, mas também
na arena social, em proporções ainda mais amplas. O paradigma que
está agora retrocedendo dominou nossa cultura por várias centenas
de anos, durante as quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou
significativamente o restante do mundo. Esse
paradigma consiste em várias idéias e valores entrincheirados, entre
os quais a visão do universo como um sistema mecânico composto de
blocos de construção elementares, a visão do corpo humano
como uma máquina, a visão da vida em sociedade como uma luta competitiva
pela existência, a crença no progresso material ilimitado, a ser
obtido por intermédio de crescimento econômico e tecnológico,
e - por fim, não menos importante - a crença em que uma sociedade
na qual a mulher é, por toda a parte, classificada em posição
inferior à do homem é uma sociedade que segue uma lei básica
da natureza. Todas
essas suposições têm sido decisivamente desafiadas por eventos
recentes. E, na verdade, está ocorrendo, na atualidade, uma revisão
radical dessas suposições.
Ecologia Profunda O
novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística,
que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção
de partes dissociadas. Pode também ser denominado visão ecológica,
se o termo "ecologia" for empregado num sentido muito mais amplo e profundo que
o usual. A percepção
ecológica profunda reconhece a independência fundamental de todos
os fenômenos e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades, estamos
todos encaixados nos processos cíclicos da natureza (e, em última
análise, somos dependentes desses processos). Os dois termos, "holístico"
e "ecológico", diferem ligeiramente em seus significados, e parece que
"holístico" é um pouco menos apropriado para descrever o novo paradigma.
Uma visão
holística, digamos, de uma bicicleta significa ver a bicicleta como um
todo funcional e compreender, em conformidade com isso, as interdependências
das suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas
acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada
no seu ambiente natural e social - de onde vêm as matérias-primas
que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio ambiente natural
e a comunidade pela qual ele é usada, e assim por diante.
Essa distinção entre "holístico" e "ecológico" é
ainda mais importante quanto falamos sobre sistemas vivos, para os quais as conexões
com o meio ambiente são muito mais vitais. O sentido em que eu uso o termo
"ecológico" está associado a uma escola filosófica específica
e, além disso, a um movimento popular global conhecido como "ecologia profunda",
que está rapidamente adquirindo proeminência. A
escola filosófica foi fundada pelo filósofo norueguês Arne
Naess, no início dos anos 70, com sua distinção entre "ecologia
rasa" e "ecologia profunda". A ecologia rasa é antropocêntrica, ou
centralizada no ser humano. Ela vê os seres humanos como situados acima
ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor
instrumental, ou de "uso", à natureza. A
ecologia profunda não separa seres humanos - ou qualquer outra coisa do
meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção
de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente
interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o
valor intrínseco de seres vivos e concebe os seres humanos apenas como
um fio particular na teia da vida. Em
última análise, a percepção da ecologia profunda é
percepção espiritual ou religiosa. Quando a concepção
de espírito humano é entendida como o modo de consciência
no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência,
de conexidade, com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção
ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. Não
é, pois, de se surpreender o fato de que a nova visão emergente
da realidade baseada na percepção ecológica profunda é
consistente com a chamada filosofia perene das tradições espirituais.
Há outro
modo pelo qual Naess caracterizou a ecologia profunda. "A essência da ecologia
profunda", diz ele, "consiste em formular questões mais profundas". É
também essa a essência de uma mudança de paradigma. Precisamos
estar preparados para questionar cada aspecto isolado do velho paradigma.
Ecologia Social
e Ecofeminismo Além
da ecologia profunda, há duas importantes escolas filosóficas de
ecologia, a ecologia social e a ecologia feminista, ou "ecofeminismo". Em anos
recentes, tem havido um vivo debate dos méritos relativos dessas três
escolas. Parece-me que cada uma delas aborda aspectos importantes do paradigma
ecológico e, em vez de competir uns com os outros, seus proponentes deveriam
tentar integrar suas abordagens numa visão ecológica coerente.
A percepção
ecológica profunda parece fornecer a base filosófica e espiritual
ideal para um estilo de vida ecológico e para o ativismo ambientalista.
No entanto, não nos diz muito a respeito das características e dos
padrões culturais de organização social que produziram a
atual crise ecológica. É
esse o foco da ecologia social. O solo comum das várias escolas de ecologia
social é o reconhecimento de que a natureza fundamentalmente antiecológica
de muitas de nossas estruturas sócio-econômicas está arraigada
no que Riane Eisler chamou de "sistema do dominador" de organização
social. O patriarcado, o imperialismo, o capitalismo e o racismo são exemplos
de dominação exploradora e antiecológica. O
ecofeminismo poderia ser encarado como uma escola especial de ecologia social,
uma vez que também aborda a dinâmica de dominação social
dentro do contexto do patriarcado. Entretanto, sua análise cultural das
muitas facetas do patriarcado e das ligações entre feminismo e ecologia
vai muito além do arcabouço da ecologia social. Os
ecofeministas vêem a dominação patriarcal de mulheres por
homens como o protótipo de todas as formas de dominação e
exploração: hierárquica, militarista, capitalista e industrialista.
Eles mostram que a exploração da natureza, em particular, tem marchado
de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas com
a natureza através dos séculos. Essa antiga associação
entre mulheres e natureza liga a história das mulheres com a história
do meio ambiente, e é a fonte de um parentesco natural entre feminismo
e ecologia. Conseqüentemente,
os ecofeministas vêem o conhecimento vivência feminino como uma das
fontes principais de uma visão ecológica da realidade.
Novos Valores Neste
esboço do paradigma ecológico emergente, enfatizei até agora
as mudanças nas percepções e nas maneiras de pensar. Se isso
fosse tudo o que é necessário, a transição para um
novo paradigma seria muito mais fácil. Há,
no movimento da ecologia profunda, um número suficiente de pensadores articulados
e eloqüentes que poderiam convencer nossos líderes políticos
e corporativos acerca dos méritos do novo pensamento. Mas isto é
só parte da história. A mudança de paradigmas requer uma
expansão não apenas de nossas percepções e maneiras
de pensar, mas também de nossos valores. É
interessante notar aqui a notável conexão nas mudanças entre
pensamentos e valores. Ambas podem ser vistas como mudanças da auto-afirmação
para a integração. Essas tendências - a auto-afirmativa -
são aspectos essenciais de todos os sistemas vivos. Nenhuma delas é,
intrinsecamente, boa ou má. O que é bom, ou saudável, é
um equilíbrio dinâmico; o que é mau, ou insalubre, é
o desequilíbrio - a ênfase excessiva em uma das tendências
em detrimento da outra. Agora,
se olharmos para a nossa cultura industrial ocidental, veremos que enfatizamos
em excesso as tendências auto-afirmativas e negligenciamos as integrativas.
Isso é evidente tanto no nosso pensamento como nos nossos valores.
Uma coisa que notamos ao
examinar essas tendências opostas lado a lado é que os valores auto-afirmativos
- competição, expansão, dominação - estão
geralmente associados a homens. De fato, na sociedade patriarcal, eles não
apenas são favorecidos como também recebem recompensas econômicas
e poder político. Essa
é uma das razões pelas quais a mudança para um sistema de
valores mais equilibrados é tão difícil para a maioria das
pessoas, em especial para os homens. O
poder, no sentido de dominação sobre outros, é a auto-afirmação
excessiva. A estrutura social na qual é exercida de modo mais efetivo é
a hierarquia. De fato, nossas estruturas políticas, militares e corporativas
são hierarquicamente ordenadas, com os homens geralmente ocupando os níveis
superiores, e as mulheres, os inferiores. A
maioria desses homens, e algumas mulheres, chegaram a considerar sua posição
na hierarquia como parte de sua identidade e, desse modo, a mudança para
um diferente sistema de valores gera neles medo existencial. No
entanto, há outro tipo de poder, um poder mais apropriado para o novo paradigma
- poder como influência de outros. A estrutura ideal para exercer esse tipo
de poder não é a hierarquia, mas a rede, que é também
a metáfora central da ecologia. A mudança de paradigma inclui, dessa
maneira, uma mudança na organização social, uma mudança
de hierarquias para redes.
Ética Toda
a questão dos valores é fundamental para a ecologia profunda; é,
de fato, sua característica definidora central. Enquanto o velho paradigma
está baseado em valores antropocêntricos (centralizados no ser humano),
a ecologia profunda está alicerçada em valores ecocêntricos
(centralizados na Terra). É
uma visão de mundo que reconhece o valor inerente da vida não-humana.
Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas
umas às outras numa rede de interdependências. Quando essa percepção
ecológica profunda torna-se parte de nossa consciência cotidiana,
emerge um sistema de ética radicalmente novo. Essa
ética ecológica profunda é urgentemente necessária
nos dias de hoje, especialmente na ciência, uma vez que a maior parte daquilo
que os cientistas fazem não atua no sentido de promover a vida nem de preservá-la,
mas sim no sentido de destruir a vida. Com os físicos projetando sistemas
de armamentos que ameaçam eliminar a vida do planeta, com os químicos
contaminando o meio ambiente global, com os biólogos pondo à solta
tipos novos e desconhecidos de microorganismos sem saber as conseqüências,
com psicólogos e outros cientistas torturando animais em nome do progresso
científico - com todas essas atividades em andamento, parece da máxima
urgência introduzir padrões "ecoéticos" na ciência.
Geralmente, não
se reconhece que os valores não são periféricos à
ciência e `tecnologia, mas constituem sua própria base e força
motriz. Durante a revolução científica no século 17,
os valores eram separados dos fatos, e desde essa época tendemos a acreditar
que os fatos científicos são independentes daquilo que fazemos,
e são, portanto, independentes dos nossos valores. Na realidade, os fatos
científicos emergem de toda uma constelação de percepções,
valores e ações humanos - em uma palavra, emergem de um paradigma
- dos quais não podem ser separados. Embora grande parte das pesquisas
detalhadas possa não depender explicitamente do sistema de valores do cientista,
o paradigma mais amplo, em cujo âmbito essa pesquisa é desenvolvida,
os cientistas são responsáveis pelas suas pesquisas não apenas
intelectual mas também moralmente. Dentro
do contexto da ecologia profunda, a visão segundo a qual esses valores
são inerentes a toda a natureza viva está alicerçada na experiência
profunda, ecológica ou espiritual, de que a natureza e o eu são
um só. Essa expansão do eu até a identificação
com a natureza é a instrução básica da ecologia profunda.
Traduzido
por Newton Roberval
Eichemberg e divulgado pelo Projeto Vida |